Daniel Silva

Sou estudante do sexto ano de Medicina na Universidade do Minho e a minha paixão por política é muito grande. Debruço-me frequentemente sobre questões relativas ao sistema americano, que considero o mais difícil e fascinante do mundo.

No momento em que escrevo estas linhas, são já as primeiras horas do dia em todo o território americano, que hoje acorda banhada (muito) a azul, mas também a vermelho e branco, com o brilho da esperança no olhar, procurando uma nova era, longe do negacionismo, do insulto e do mau caráter. Sou um confesso admirador da “América”, como muitas vezes lhe chamamos, não só pelo seu sistema político fascinante, mas também pela organização, regras próprias, resiliência e capacidade de regeneração.

As eleições americanas de 2020 foram um marco histórico a vários motivos, mas houve acima de tudo um: deixaremos de ter uma espécie-de-presidente e passaremos a ter um presidente mais moderado, mais capaz de arranjar consensos dentro e fora de portas. Como grande defensor do conhecimento da história, acredito que devemos olhar para os eventos não apenas no seu enquadramento atual, mas também “puxar a fita atrás” e compreender porque acontecem determinadas coisas em determinados locais.

Nesse sentido, é para mim importante começar a falar destas eleições num ponto temporal distante, mais precisamente no dia 4 de julho de 1776. Esta data é marcante uma vez que nela foi feita a ratificação da Declaração da Independência. No entanto, não é só a data que é marcante, mas também a cidade, Filadélfia, vista como o berço da independência americana. Hoje, 244 anos depois, outra vez Filadélfia: o estado da Pensilvânia volta a ser decisivo para mostrar o caminho a uma América perdida, sem rumo e “sem alma”, citando o agora presidente eleito, Joseph Robinette Biden Jr.

Os resultados desta eleição, ainda por fechar e certamente contestados por um ainda presidente Donald Trump completamente errático e cada vez mais desapoiado internamente, mostram claramente que a América voltou a preferir a moderação e o centro aos extremos. Houve um repúdio ao radicalismo, ao racismo, à rejeição da ciência e à xenofobia; e houve também à atitude de atirar para a lama umas das principais joias do sistema político da Land of the Free: a democracia e a liberdade.

Pode não ter parecido, mas com Donald Trump foi talvez o ponto em que a democracia americana, a maior do mundo, esteve mais ameaçada por um autocrata que punha e dispunha dos colaboradores como peças do seu xadrez com agenda própria. Luís Costa Ribas, correspondente da SIC em Washington D.C. há vários anos e um homem respeitado no que aos assuntos políticos dos States diz respeito, dizia que há o receio, no “velhinho” partido republicano, que Trump tenha deixado marcas profundas, uma espécie de “sub-partido de Trump”. E vários notáveis, como Mitt Romney, já o admitiram.

A corrida à Casa Branca tem como cabeça-de-cartaz a eleição do presidente. Mas, assim como fiz com Biden em 2008, no saudável e saudoso duelo entre Barack Obama e John McCain, considero que há algo especial em Kamala Harris. Não concordo com todas as suas ideias, longe disso, mas o discurso da vice-presidente eleita ontem, em Delaware, mostrou o poder de uma América diversa e, acima de tudo, mostrou a diferença entre uma administração patriarcal (pese embora a quantidade de mulheres na Administração Trump, não deixava de existir um marcado nível de machismo) e outra que mostra o papel que as mulheres podem e devem ter no sistema político, seja nos Estados Unidos, seja em qualquer parte do mundo, pois são muitas vezes mais capazes até de olhar, com uns olhos mais ternos e sensíveis, para situações em que a visão masculina não serve para resolver os problemas.

Os EUA são um país enorme, não só em termos territoriais, mas também na questão cultural e social, um autêntico melting pot visível na dinâmica das suas maiores cidades. Um país construído a partir das mãos dos nativos, mas também dos que para lá se deslocaram. Um país feito de dor, de suor, de sacrifício, de perda, mas também de grandes momentos. Cinco conceitos que parecem, pelas histórias pessoais do presidente e da vice-presidente, encaixar nesta nova forma de ver o mundo. E, pelo menos eu, acordei hoje com mais orgulho em ser um cidadão global.

Mas, honestamente, olho com cautela para estes tempos que se avizinham, não só dada a circunstância sanitária que atravessamos, mas também porque a sociedade norte-americana se encontra, hoje mais do que nunca (pelo menos no passado recente, entenda-se), altamente polarizada. Mas olho também com otimismo, certo de que é tempo de construir pontes, dentro e fora dos Estados Unidos.