Ricardo Costa Pereira

Considero a morte como algo chato, por isso valorizo tanto a vida. Sou doutorado em História pela FLUP e investigador do CITCEM. De momento (como sempre), com bastantes ideias para projetos.

O historiador Jacques Le Goff publicou um pequeno livro, embora cheio de grandes ideias, intitulado A Bolsa e a Vida. A sua obra analisa um momento charneira da Época Medieval, nomeadamente quando o crescimento da economia monetária colidiu com os baluartes da moral cristã.

Numa Idade Média marcada profundamente pela crença na vida eterna, o usurário era considerado como duplo pecador: lesava Deus ao utilizar o tempo (entendido como um roubo ao próprio Deus) entre o empréstimo e o reembolso para fazer mais dinheiro e ainda (aliciava) arruinava muitos cristãos, segundo a perspetiva eclesiástica. Todavia, o crescimento económico não permitia olvidar o poder das elites citadinas (caso de Florença, Veneza, etc.), por isso, a Igreja deparava-se com um dilema: como condenar a usura, de acordo com os preceitos da moral cristã, sem obstaculizar o desenvolvimento da economia e perder influência?

Atualmente, o mundo está de joelhos devido ao impacto da pandemia da Covid-19. Eis que o dilema volta a assolar as lideranças europeias (e mundiais): salvar a economia (simbolizada pela bolsa) ou salvaguardar a saúde (a vida)? Enquanto historiador considero, por vocação e quiçá eivado de teimosia, que a História tem um papel importante a desempenhar na tomada de decisões. Afinal, saber é invariavelmente melhor do que não saber. Assim, conhecer o passado permite navegar de modo mais esclarecido pelas águas agitadas do Futuro.

Não por obra do acaso, Eric Hobsbawm, historiador britânico, comentava aquando de uma entrevista: “o que irá acontecer tem de estar ligado com o que já aconteceu”. Ciente deste facto, enveredo pela explicação da solução encontrada pelos nossos antepassados medievais. Niall Kishtainy escreve: “tal como (Santo) Agostinho tinha compreendido, num mundo de pecado as pessoas necessitam de possuir coisas de modo a poderem sustentar-se a si e às suas famílias”. Ninguém vive no mundo ideal.

A Igreja acabou por encontrar um caminho ousado, através da voz pesada de São Tomás de Aquino, para resolver o problema. O intelectual da Igreja diz-nos que “era aceitável vender algo desde que fosse pelo preço justo”. E adiciona: “os juros sobre os empréstimos eram, por vezes, aceitáveis”. A força socioeconómica do dinheiro abalou os fundamentos daquela sociedade e, gradualmente, esmoreceu a condenação dos novos instrumentos de negócio.

Nos alvores do século X, o agiota tinha o destino traçado, com os pés aquecidos pelas labaredas do Inferno. Dois séculos depois, um indivíduo dedicado ao comércio e aos empréstimos abria o registo do seguinte modo: “Em nome de Deus e do lucro”. O que se passou? O Purgatório, responderia Jacques Le Goff. Essa “invenção” da Igreja, o Purgatório, era alvo de desprezo por parte dos Luteranos do século XVI, precisamente porque foi “inventado” para responder à realidade emergente, cozinhada no caldeirão da História, fruto das transformações socioeconómicas tardo-medievais. Nas palavras eruditas de Chateaubriand, “o purgatório supera em poesia o céu e o inferno, pois representa um futuro que falta aos dois primeiros”.

Se a Igreja não podia “fechar os olhos” ao poder e à influência crescentes das elites económicas também não era aceitável normalizar os empréstimos com juros elevados e abdicar dos preceitos cristãos. Por isso, arranjou uma solução, aquilo que Jacques Le Goff apelida de “terceiro lugar”. Em vez da condenação sem esperança e não podendo atribuir a salvação aos “duplos pecadores”, a Igreja abriu-lhes as portas do chamado terceiro lugar, o Purgatório, a sala de espera.

Hoje, os governantes estão encarcerados numa “prisão de dúvidas”. O confinamento total permite salvar as pessoas mas faz colapsar a economia enquanto a diminuição das restrições sanitárias pode levar ao aumento do número de mortes em troca do salvamento de parcelas da economia. De novo, a questão primordial: a bolsa ou a vida?

Pessoalmente, acredito no equilíbrio entre as limitações impostas pelos Governos aos cidadãos, no contexto pandémico, e a necessidade de continuar a vida, dentro dos moldes possíveis, com intuito de alcançar essa terceira via: nem oito, nem oitenta. À semelhança do nascimento do Purgatório, precisamos de encontrar uma ponte, o ponto comum, a harmonia entre as restrições e as liberdades constitucionais, entre a economia e a saúde, entre o exercício do poder, em estado de exceção, e as liberdades. O mundo não é uma tela a preto e branco. Pode demorar? Sim. Ninguém disse que seria fácil. Contudo, há uma janela de oportunidade para conseguir o equilíbrio. A saúde é a prioridade, mas sem economia também não resta muita saúde. No meio temos a liberdade, que não significa anarquia. Ao invés, traduz-se na responsabilidade de saber ser livre. Uma liberdade apoiada nas leis democráticas, em suma, no Estado de Direito. A vida é o valor supremo? Sim, mas acompanhada pela liberdade inerente.

Fecho o texto de opinião com o conselho, bem necessário para este tempo, de Jean Valjean às portas da morte: “Amai-vos sempre muito! É o melhor que podemos dar e receber no mundo: amarmo-nos uns aos outros”. Com esperança de que ninguém fique sem a bolsa e sem a vida.