Mário Amorim Lopes
É investigador no INESC-TEC e professor universitário na FEUP e na Católica Porto Business School. Foi deputado do Health Parliament Portugal e já conta com vários artigos de opinião publicados no Observador.
Na Grécia Antiga existia um procedimento algo peculiar que era copiosamente usado e que consistia em expulsar pessoas inconvenientes. Chamava-se ostracismo. Durante 10 anos, o cidadão ficava proibido de entrar na cidade-estado de Atenas.
A expulsão não era uma pena que decorria de um crime, mas sim uma medida preemptiva, tomada de antemão. Um Minority Report do classicismo grego. Expulsavam-se as pessoas e expurgavam-se assim as posições ou ideias que pusessem em causa as posições ou ideias prevalecentes. À boa maneira grega, tudo era feito de uma forma muito democrática: reunia-se um quórum de pelo menos seis mil pessoas e expulsava-se o emplastro.
Solevavam-se assim seis mil almas dos afazeres atenienses, que incluíam tocar a lira, para afastar aqueles que diziam coisas que estes não gostavam de ouvir. Vinte e cinco séculos depois, este ostracismo ainda existe e está a ganhar cada vez mais força, especialmente nas universidades. Apenas não se chama ostracismo, mas sim no-platforming.
O objetivo do no-platforming é evitar que estas pessoas que, enfim, têm ideias, opiniões ou perspetivas diferentes das nossas possam participar num debate público e ter exposição. Os defensores do no-platforming — chamemos-lhes, por candura e um pouco de graça também, os novos inquisidores — apresentam argumentos que, prima facie, parecem convincentes: não queremos nazis a espalharem discurso de ódio. Será difícil discordar desta posição. Mas quem traça a barreira do que é e não é discurso de ódio?
Vejamos. Em 2017, alunos do Middlebury College impediram que o cientista político Charles Murray participasse numa conferência que lá iria ter lugar. Em 2018, alunos da Central University of Oklahoma cancelaram o convite que tinha sido endereçado a Ken Ham, após pressões de um outro grupo de alunos. Também Christine Lagarde foi desconvidada para falar após uma petição de alunos do Smith College. Ou Condoleezza Rice, cujo convite para o dia de graduação da Rutgers University levou a um manifesto onde ela foi apelidada de “criminosa de guerra” e, subsequentemente, desconvidada. Ou Kay Coles James que, após ter sido convidada para fazer parte de uma board da Google constituída para analisar questões éticas levantadas por projetos de Inteligência Artificial, foi afastada depois de 1600 funcionários da empresa assinarem uma petição contra a presença dela. Em Portugal, também tivemos um caso recente: Jaime Nogueira Pinto foi desconvidado de uma palestra que iria ministrar na FCSH da Universidade Nova [de Lisboa], após pressão de alguns alunos.
Serão todas estas pessoas neonazis? Estas pessoas terão ideias ou pontos de vista que serão discutíveis e certamente criticáveis. Charles Murray é autor de um livro muito polémico, escrito com base na sua investigação científica, em que sugere que o preditor mais importante para o sucesso socioeconómico e profissional é a inteligência. Ken Ham é um criacionista (vivo) que acredita que o Universo e todos os seres foram criados por Deus. Christine Lagarde, hoje presidente do Banco Central Europeu, era, à data, presidente do Fundo Monetário Internacional. Condoleezza Rice foi Secretária de Estado de George W. Bush, conhecida por ter uma posição beligerante em relação à política externa dos EUA. Kay Coles era directora da Heritage Foundation, um think tank conservador. E Jaime Nogueira Pinto tem uma prelação pelo nacionalismo identitário, que inspirou muitos regimes nada recomendáveis. Pessoas enfadonhas? Eventualmente. Nazis?
Assumamos que, ainda assim, defendem ideias muito perniciosas, ao ponto de não conseguirmos tolerar sequer que sejam expressas em público, sob pena de nos ofenderem com uma gravidade tal que jamais conseguiríamos recuperar do golpe desferido. Assumindo isto, a melhor resposta será mesmo calar aqueles de quem discordamos, silenciando-os no espaço público, ou será rebatê-los, expondo a fraqueza dos seus argumentos e denunciando as implicações das suas ideias? Rebatê-los perante terceiros, com contraditório, delatando a tibieza do seu pensamento?
Não surpreende que haja quem queira silenciar os outros e que ache que esse é o caminho mais fácil. Esse sempre foi, aliás, o traço que distinguia as democracias dos regimes totalitários, da esquerda à direita: o aniquilamento do contraditório e da crítica; a perseguição da diferença; a supressão dos livros. O que surpreende é que estes novos inquisidores venham de Universidades, que devem ser o último bastião da liberdade de pensamento e de expressão.
Talvez nunca vos tenha ocorrido pensar na origem da palavra Universidade, até porque a etimologia é uma disciplina tão fascinante quanto declamar a lista telefónica, mas Universidade vem de Universal, do todo, que engloba todas as escolas de pensamento. Numa Universidade não há um pensamento, há vários, e quantos mais, melhor, até porque é assim que a ciência progride. O criacionismo não foi derrotado com o silêncio dos seus proponentes — foi derrotado com as palavras dos dissidentes, com as palavras de Darwin. As ideias virtuosas não se sublevam porque silenciamos as más, sublevam-se porque são melhores do que as más.
Também Platão expulsou os poetas, por os considerar menores e por achar que aquilo que escreviam não tinha lugar na sua grande República. Por certo que tal nos pouparia a muito má poesia, mas também não teríamos tido o prazer de ler Homero, Goethe ou Victor Hugo. Uma sociedade próspera e sã é uma sociedade aberta e plural, que é capaz de conviver com a diferença, debatendo-a e não a ostracizando. Uma sociedade livre é uma sociedade em que as suas instituições, em especial as Universidades, são espaços de pluralismo e de diversidade, e sobretudo de liberdade de expressão e intelectual. Cabe-vos a vós a nobre missão de lutar por este importante legado, porque um dia poderão ser vós no pelourinho.