A 7 de outubro de 2023 o conflito atual entre Israel e o grupo terrorista Hamas escalou drasticamente, após um ataque planeado do Hamas contra Israel. Foram lançados milhares de mísseis contra cidades israelitas, além de membros do Hamas terem ultrapassado a fronteira de Gaza invadindo diversas comunidades do país vizinho, causando mais de 1000 mortes e fazendo, pelo menos, 200 pessoas reféns. Algumas horas após o ataque, o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, declarou “estado de guerra” e em resposta, iniciou uma forte operação militar que tinha como objetivo desmantelar a infraestrutura militar do Hamas.
Desde então, após um ano de guerra, já foram causadas mais de 90 000 mortes e instaurou-se uma crise humanitária em Gaza, onde os civis palestinianos enfrentaram deslocamentos constantes e falta de acesso a recursos básicos. A ofensiva por parte de Israel gerou diversas tensões globais e alimentou os debates sobre legítima defesa, a proporcionalidade das ações de Israel e as consequências humanitárias da guerra.
Queixa da África do Sul ao TIJ

Foi a 29 de dezembro de 2023 que a África do Sul apresentou uma queixa no Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), onde acusava Israel de genocídio, alegando que as suas ações em apenas dois meses de guerra violavam a Convenção de Genocídio de 1948, da qual Israel é signatário. Segundo a África do Sul, Israel teria ultrapassado a definição de legítima defesa e as suas ações demonstraram apenas interesse em “trazer destruição a uma parte substancial do grupo nacional, racial e étnico palestiniano”, em específico, os palestinianos em Gaza.
É assim que a Convenção define genocídio, englobando atos como: a morte de membros do grupo, inflição de danos físicos ou mentais graves a membros do grupo ou imposição deliberada de condições de vida que visem à destruição física, total ou parcial do grupo.
Na sua queixa oficial, África do Sul distingue outras violações do direito internacional cometidas por Israel dos atos que considera genocídio. De acordo com o Institute for Media East Understanding (IMEU) estima-se que, até dezembro de 2023, os bombardeamentos israelitas em Gaza danificaram cerca de 72 a 117 locais religiosos (incluindo mesquitas e igrejas) e cerca de 200 locais culturais e históricos.
“O município de Gaza condena a ocupação israelense da Mesquita Grande Omari, na Cidade Velha do centro de Gaza, como parte da sua política de destruir os monumentos históricos e arqueológicos da cidade. A Mesquita de Omari é a maior e mais antiga da antiga Faixa de Gaza e foi nomeada em homenagem ao sucessor Umar Ben al-Khattab.”
De acordo com um infográfico publicado pela ONU em dezembro de 2023, os hospitais estavam sob constantes bombardeios, onde de 36 hospitais apenas 11 estavam funcionais (no entanto com escassez crítica de sangue, medicamentos e outros essenciais). Foram também bombardeadas várias universidades e escolas, tornando o setor educacional completamente debilitado e fazendo um grande número de estudantes (mais de 600 000) perder o acesso à educação devido à destruição das instalações. Estes são exemplos de alguns dos atos que África do Sul declara como violações do direito internacional, apesar de se relacionarem com os crimes de genocídio.
África do Sul solicitou ao TIJ medidas provisórias e urgentes para que Israel interrompesse as suas operações militares na região. Israel rejeitou as acusações, argumentando que todas as suas ações têm como objetivo combater o Hamas e não o povo palestiniano. Além disso, o país considerou a queixa mal fundamentada e politicamente motivada. Na altura, a nível internacional, pelo menos 13 países manifestaram-se a favor da queixa e apresentaram declarações formais de intenção de participar no caso, com base em interesses legais ou apenas por serem signatários da Convenção Sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio.
Por outro lado, Israel recebeu apoio de alguns aliados, que se opuseram à queixa, evidenciando a falta de fundamento das alegações de genocídio. Os Estados Unidos da América mostraram ser o aliado mais forte de Israel, ao enfatizar que este têm o direito de se proteger contra ataques, nomeadamente após os eventos de outubro de 2023. A administração de Biden rejeitou a ideia defendida pela África do Sul e argumentou desde sempre que a situação em Gaza deveria ser avaliada no contexto dos ataques contínuos do Hamas e a necessidade de Israel proteger os seus cidadãos.
Desenvolvimento do Processo
A 26 de janeiro de 2024, o TIJ não ordenou um cessar-fogo, mas emitiu medidas provisórias onde ordenava que Israel fizesse tudo ao seu alcance para prevenir genocídio, mais detalhadamente, deveria evitar todas as ações que pudessem agravar ou prolongar o conflito, ou até mesmo causar danos irreparáveis à população palestiniana em Gaza.
O Tribunal exigiu que Israel deveria submeter um relatório, dentro do período de um mês, onde detalhasse todas as medidas tomadas para cumprir com as ordens do Tribunal. Este relatório foi entregue dentro prazo, mas mantiveram-se as questões das massas sobre o quão efetivas foram as ações de Israel tendo em conta que a situação manteve-se crítica.
Posteriormente, a 28 de março de 2024, estas medidas foram modificadas, após um pedido da África do Sul para mais restrições. Este pedido devia-se à prolongada privação de alimentação e outras necessidades essenciais, fazendo com que as condições de vida deteriorassem cada vez mais.
O Tribunal ordenou que Israel implementasse imediatamente todas as medidas necessárias para que todos os bens essenciais chegassem ao alcance dos palestinianos em Gaza. Passaram assim a incluir restrições mais específicas relacionadas com o uso de força desproporcional por parte de Israel e a garantia de acesso a ajuda humanitária em Gaza. Israel agiu perante estas ordens e garantiu que o seu exército não iria intervir na entrega e distribuição de ajuda humanitária urgente.
Apesar dos medidas ordenadas pelo tribunal, em maio de 2024, Israel iniciou uma ofensiva militar em Rafah. As forças israelitas tomaram conta da zona fronteiriça de Rafah, um ponto estratégico entre Gaza e o Egito e essencial para o fluxo de ajuda humanitária. Esta operação prolongou-se durante semanas acompanhada de bombardeamentos intensos, tendo como resultado diversas mortes de civis e o deslocamento em massa de uma “cidade que se teria tornado um ponto de refúgio para quase metade da população em Gaza”. Israel explicou esta operação dizendo que era uma localização essencial para combater o grupo terrorista Hamas.

No final de maio, as Nações Unidas publicaram um infográfico onde explicava que o número de hospitais funcionais subiu para 15, mantendo-se no entanto as condições precárias. Neste período, descrevem que o número de missões humanitárias realizadas e facilitadas pelas autoridades israelenses era inferior ao número total de missões canceladas, impedidas ou com acesso negado.
De acordo com os documentos oficiais do TIJ, África do Sul pediu uma segunda revisão das medidas, pedindo que Israel cessasse todas as operações militares em Gaza (especialmente a de Rafah) e garantisse o acesso humanitário sem obstáculos. O Tribunal constatou que a situaão humanitária em Gaza deteriorou-se significativamente e, a 24 de maio de 2024, reafirmou as medidas anteriores ordenando que Israel cessasse imediatamente a ofensiva militar em Rafah e mantivesse a passagem aberta. Além disso, Israel foi obrigado a garantir acesso sem restrições a missões de investigação da ONU para que fossem adquiridas evidências de possíveis atos de gencídio e que fosse novamente submetido um relatório sobre as medidas em conformidade, dando o mesmo prazo que o anterior.
Israel submeteu o relatório exigido, detalhando todas as medidas tomadas para cumprir as ordens relacionadas à suspensão das operações em Rafah. Todavia, embora tenha afirmado que o acesso humanitário à região estava garantido, a ofensiva em Rafah continuou, com Israel a defender as suas ações, clarificando-as como necessárias para a neutralização do Hamas.
No caso do não cumprimento das tarefas implementadas pelo TIJ surgem diversas consequências para Israel, não só a nível legal. Essencialmente, este tipo de ação poderia prejudicar a sua posição legal e diplomática no processo em curso, reforçando a ideia defendida pela África do Sul (podendo ter relevância para uma possível decisão final do tribunal). Por sua vez, possibilitando a interpretação de uma certa desconsideração pelo direito internacional, prejudicando a sua imagem global.
Embora o TIJ não tenha, de facto, um mecanismo de execução, a não conformidade com estas medidas poderia levar a uma maior pressão política e económica como sanções de países ou de organismos internacionais. Causaria também a possibilidade de muitos estados mobilizarem-se para a toma de medidas diplomáticas ou económicas contra Israel agravando o isolamento internacional.
Este processo judicial continua em análise, tendo já intervindo 11 países (Nicarágua, Colômbia, Líbia, México, Palestina, Espanha, Turquia, Chile, Maldivas e Bolívia. Até ao momento ainda não foi tomada nenhuma decisão final por parte do tribunal.