É difícil precisar uma data para quando os movimentos feministas se começaram a organizar no combate à sociedade maioritariamente machista. Em 1975, o dia 8 de março tornou-se o dia simbólico pela batalha de igualdade de género, mas, para várias feministas, o armistício parece tão longe agora do que quando comparado com essa altura.
Desigualdade salarial, objetificação, falta de representação, violência, opressão e assédio físico e psicológico são todos tópicos que há mais de um século são associados ao manifesto desta batalha. No entanto, por entre avanços e recuos, a luta feminista não estagnou no tempo. São novos os desafios que se impõem a uma sociedade ainda contruída de homens para homens, onde a interseccionalidade ocupa a trincheira principal, numa guerra onde as vivências são tão plurais como as reivindicações.
Para assinalar a data, a Academia de Política Apartidária organizou a sua sétima Political Talks – “Dois Sexos, Duas Medidas” -, que juntou a teoria de Leonor Valente Monteiro, advogada e vice-presidente da Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres, com a experiência de campo de Marisa Matias, eurodeputada pelo Bloco de Esquerda, para falar sobre papéis sociais, as discrepâncias laborais entre sexos e inclusivamente a relação entre as quotas de género e a noção de meritocracia.
As leis que teimam em descolar do papel
A atual Constituição, aprovada em 1976, veio separar as águas no que diz respeito aos direitos das mulheres. Para trás, ficou um passado de abusos laborais e civis, quando a mulher tinha, por exemplo, de ter a autorização do marido para abrir um negócio e, até, viajar. Para a frente, prometia-se um mundo de igualdade, mas será justo questionar se tudo não passou de uma utopia?
“As competências das mulheres ainda são subvalorizadas, mesmo elas tendo um maior desempenho escolar e universitário”, constata Leonor Valente Monteiro.
Para Leonor Valente Monteiro, as limitações do passado podem não estar na lei, mas continuam na mentalidade das pessoas. Ainda está impressa, tantos nas mulheres, como nos homens, uma “estrutura social incutida pelo processo de socialização”, onde o sexo feminino é reduzido ao papel doméstico, a um papel inferior ao homem na hierarquia social que continua a constranger ações com base no sexo. “As mulheres são vistas como cuidadoras na sociedade”, afirma Marisa Matias.
A desigualdade salarial é um tema complexo para Leonor, que olha para as razões da sua existência como uma teia de aranha, onde várias causas estão interligadas para travarem o progresso civilizacional. É também uma discriminação direta, difícil de ocultar, até porque os números rapidamente a confirmam. Segundo a advogada, “as competências das mulheres ainda são subvalorizadas”, o que se comprova com o facto de terem um “maior desempenho escolar e universitário” e estarem em maioria confortável na academia.
“A estrutura do mercado laboral está organizada de tal forma que ainda se permite não contratar mulheres por estarem em idade reprodutiva”, lamenta Marisa Matias.
Mas quais são estas razões? Para além da perceção social da mulher, um maior número de interrupções na carreira – justificado pela maior dificuldade em conjugar a vida profissional com a vida pessoal – leva as empresas a preferirem o sexo masculino. “A estrutura do mercado laboral está organizada de tal forma que ainda se permite não contratar mulheres por estarem em idade reprodutiva”, afirma Marisa Matias, apesar de a “lei estar lá a proibir”. Segundo a eurodeputada, mesmo quando as mulheres já se encontram nas fileiras das empresas, sofrem situações de assédio moral que não seriam feitas a homens, como é o caso da Cristina Tavares. “Falamos de uma questão onde se discutia se se podia ir à casa de banho ou não.”
Esta perceção social veio ser agravada pela pandemia. De acordo com Leonor Monteiro, 82% das pessoas a cuidar de filhos menores de 12 anos em casa são mulheres, ao que Marisa adiciona o fator teletrabalho, relembrando que a reprodução das atividades domésticas “ainda recai muito mais nas mulheres”. “Não acho que há ninguém que consiga cumprir um horário de trabalho e cuidar de filhos e outras pessoas ao mesmo tempo. Estamos a assistir a uma sobrecarga das mulheres, onde não há o direito de desligar”, afirma a eurodeputada.
As soluções são várias para mitigar as desigualdades sociais. Leonor Monteiro sugere uma “penalização” – embora afirme que não é bem esta a palavra – das empresas que não permitem ou incentivem a articulação entre mãe e pai nas licenças de maternidade, que continuam a consistir um problema na carreira profissional da mulher. Já Marisa aponta para um reforço dos meios e recursos de fiscalização para identificar as empresas que continuam a praticar “um incumprimento da lei”, que perpetua as clivagens salariais e de direitos.
O crime de género
O assédio moral que Cristina Tavares sofreu no seu local de trabalho é só uma das várias formas que a violência sobre as mulheres personifica. Stalking, mutilação, violência doméstica são todas exemplos que tornam a violência num “crime de género”, como afirma Leonor Monteiro.
Segundo a advogada, a convenção de Istambul reconhece, no seu preâmbulo, que “a violência exercida contra as mulheres é um mecanismo social” e “uma manifestação de poderes historicamente desiguais, que impediu e impede as mulheres de progredirem plenamente”. Daí a não ser preciso depender de um homem financeiramente para sofrer de violência, já que a sociedade está estruturada de uma maneira a subjugar a mulher – o que elas acabam por fazer até de forma inconsciente.
“Nós não fazemos quase nada em termos de prevenção de violência doméstica. Faltam respostas, mas a prevenção é fulcral e não está a ser feita em Portugal ou em país quase nenhum”, refere Marisa Matias.
A conversa entre as oradores frisava a necessidade de se ganhar uma consciência feminista, mas também de dar passos em frente nas leis de forma a proteger as vítimas. Para Marisa Matias, o reconhecimento da violência doméstica e no namoro como crime público e a legalização do aborto foram “passos gigantes” num percurso que ainda está longe de alcançar a meta. “Nós não fazemos quase nada em termos de prevenção de violência doméstica. Faltam respostas, mas a prevenção é fulcral e não está a ser feita em Portugal ou em país quase nenhum”, condena.
Mesmo assim, o avanço legislativo embate, novamente, nas conceções sociais, o que transforma o patamar atual de diminuição das desigualdades “muito lento” para a bloquista. “É preciso fazer muito do ponto de vista educacional para virmos a poder reduzir, todos os anos, os níveis de desigualdade social.”
Uma maioria sub-representada
As quotas podem ter vindo impulsionar a presença das mulheres em órgãos de decisão, mas também são alvo de esquemas para as ultrapassar, afirma Marisa Matias. A eurodeputada salienta que a presença feminina nesta área tem sido tudo menos natural, mesmo sendo a maioria da população em Portugal.
“Eu confesso que estarei disponível para falar sobre meritocracia, quando partirmos todos do mesmo sítio”, realça Marisa Matias.
Leonor lamenta que se tenha de fazer desta forma, “mas se nada tivesse sido feito, teríamos menos mulheres no Parlamento, por exemplo, do que já temos”. Muitas vezes, recorda a advogada, é utilizado o argumento da meritocracia para justificar uma maior presença masculina nos órgãos de poder, o que Marisa Matias não consegue compreender. “Eu confesso que estarei disponível para falar sobre meritocracia, quando partirmos todos do mesmo sítio. Não apenas entre homens e mulheres, mas também em relação à origem socioeconómica, idade… Enquanto isso não acontecer, é apenas uma questão de atrasar o progresso para uma sociedade mais justa.”
Saber quando a igualdade de género vai deixar de ser uma ideia utópica para se verificar na realidade parece pergunta para futurologistas, mas, tanto Leonor, como Marisa, entendem que só poderá ser alcançada quando todos nós ganharmos consciência social no nosso quotidiano. “Enquanto andarmos sistematicamente a embater contra muros, barreiras e entendimentos deturpados do que é o feminismo”, como afirma a eurodeputada, a igualdade de género vai continuar no papel ou até mesmo desaparecer de lá, já que em vários países se tem assistido a “recuos civilizacionais que põem em causa esta luta”.
Se queres saber mais sobre esta análise da igualdade de género e direitos da mulher em Portugal e no mundo, vê aqui a versão completa da sétima Political Talks: