Pedro Valente Lima

Porque a política não é só para quando tiver cabelos grisalhos e uma voz de bagaço, começo aos poucos o meu caminho por um mundo que decide o dia a dia de cada um de nós. Ah! E sou o atual Diretor de Comunicação da APA.

Vivemos tempos em que o ‘drive thru’ passou a servir zaragatoas nariz acima. E se não se estiver com fome? Bom, é colocar a máscara – a tapar essas belas narinas, atenção -, manter o distanciamento físico, lavar e desinfetar as mãos, tal ordena a dança manual recomendada pela Direção-Geral da Saúde. Com novo confinamento, boa parte do comércio, a restauração, a cultura e demais setores de atividade voltam a encerrar – mais uma vez com belíssimas incoerências, meu Deus. Menos a Democracia: essa quer-se sempre bem aberta, plena e ciente das suas conquistas e garantias, mas também das suas falhas. E é aqui que começo a falar mais a sério, vá.

Nestas eleições presidenciais chega uma “novidade”, que na verdade mais parece um velho conhecido nosso: a Covid-19. Neste novo capítulo, com energias bastante apocalípticas, a classe política portuguesa já precaveu alguns pormenores: além do uso obrigatório de máscaras e disposição de álcool-gel aos eleitores, foram desdobradas as mesas de voto, de modo a evitar ajuntamentos; o voto antecipado em mobilidade foi aberto a toda a população em território nacional, assim como cada um dos 308 concelhos passou a dispor de uma mesa de voto para o efeito. Além disso, apesar do novo confinamento geral, dia 24 está garantida a liberdade de circulação. Estão a acompanhar-me? Tudo ok até aqui? Eu diria “é o que é preciso”, mas não: há mais do que isto.

Uma vez que a pandemia do novo coronavírus tem obrigado a população ora ao isolamento profilático, ora ao isolamento por doença, o Parlamento aprovou em outubro do ano que passou, por larga maioria, um processo específico para esta nova modalidade de voto antecipado. Na altura, as regras em cima da mesa implicariam que o eleitor, em confinamento obrigatório promulgado pelas autoridades de saúde, pudesse requerer o voto antecipado até 14 de janeiro – entretanto alterado para 17 de janeiro, mas já voltamos a este ponto. Após esse período de requisição, uma equipa de representantes do município, das sete candidaturas e ainda elementos das autoridades de saúde recolherão, “porta a porta”, as escolhas dos eleitores confinados. No final deste processo, os respetivos votos ficarão sujeitos a 48 horas de quarentena. Mas então, onde está o elefante na sala de que pouco se fala?

Pois, é assim: eu acho que ninguém consegue precaver quando ficará infetado ou em isolamento profilático. Começando com esta premissa algo imprevisível, as coisas começam a ficar bastante hilariantes. Ora só quem começar o confinamento obrigatório até 17 de janeiro é que poderá requerer o voto antecipado. Ou seja, e quem inicia quarentena após 17 de janeiro? Simples: não pode votar. Não vota, porque deixa de estar elegível para qualquer tipo de voto antecipado, nem se pode deslocar às urnas no dia 24 de janeiro.

O jornal Público chegou a noticiar esta questão, fazendo as contas com uma média de 5 mil casos ao dia, perfazendo cerca de 50 mil pessoas que poderiam ficar de fora deste processo democrático. Mas agora já não são 5, mas sim uma média de 9 a 10 mil casos diários. Feitas as estimativas, de 17 a 24, corre-se o risco – num cenário pessimista – de 70 mil pessoas terem o seu direito ao voto completamente vedado. A jogada de mestre aqui, claramente, seria registar-se no voto antecipado em mobilidade, prevenindo um possível encontro romântico com a Covid-19 nos sete dias anteriores às Presidenciais – tal é a tentação em alguns bares.

Fora esta solução de grande cautela e antecipação – à qual já aderiram cerca de 200 mil eleitores portugueses -, faltou agilidade e vontade à atual classe política: seja o Governo, seja o Parlamento, seja o nosso Presidente da República. A pandemia, embora desvalorizada inicialmente, rapidamente se fez sentir em Portugal, desde março de 2020. Já na altura, os devidos especialistas – virologistas e infecciologistas – previam que não se retornasse à normalidade tão cedo. Mesmo que o otimismo se preservasse, cabia também aos nossos representantes precaver os cenários mais pessimistas, principalmente tendo em conta que as Presidenciais estavam à porta.

Verdade que implementar alterações profundas no sistema de voto – como um possível voto por correspondência ou voto eletrónico – são processos com alta probabilidade de serem morosos, admita-se. Contudo, quase um ano depois, a suposta solução encontrada arrisca-se a deixar de fora 70 mil portugueses, sendo que as primeiras propostas neste sentido apenas começaram a ser ouvidas na Assembleia da República em outubro – escassos 3 meses antes. Além disso, com tantos cuidados que nos são exigidos, ter uma comitiva que pode chegar às 10 pessoas a recolher os votos de dezenas, centenas ou até milhares de eleitores confinados será uma estratégia eficiente e, acima de tudo, segura?

Falou-se muito em adiar as presentes eleições, mas tal já não seria possível, por força da lei. No entanto, mesmo com a “vacina da esperança”, já se previa que 2021 seria, certamente, mais um ano de combate à pandemia, pelo que um adiamento poderia não ser eficaz, ou ser de tal modo largo que poderia colocar em causa o funcionamento regular e democrático das nossas instituições de poder. Contudo, da mesma forma que nas representações portuguesas no estrangeiro os nossos emigrantes terão a oportunidade de votar a 23 e 24 de janeiro, por que não se pensou em desdobrar também o ato eleitoral em território nacional, nos dias que fossem necessários em termos de saúde pública e ideais para o funcionamento correto da votação?

Ficam várias dúvidas no ar. Nesta fase do campeonato, diante de uma pandemia que há muitos meses já nos tem causado dor, especialmente para as pessoas que perdemos, pedia-se mais. Pedia-se mais organização, mais prevenção, mais agilidade. Infelizmente, já é tarde demais. Mas, aparentemente, não é tarde para as sucessivas incoerências e desigualdades, às quais fomos assistindo com regularidade nos últimos meses.

Marcelo Rebelo de Sousa esteve em contacto com uma pessoa infetada, desta feita um elemento da Casa Civil. Ficou em isolamento profilático? Não. Foi debater à SIC, com André Ventura. Porém, aqui pode-se ainda dar o benefício da dúvida, uma vez que a Presidência da República, em contacto com as respetivas autoridades de saúde, garantiu que o contacto que Marcelo estabelecera com este elemento foi esporádico e sempre com máscara. Contudo, num autêntico festival de testes no espaço de 48 horas, a roleta russa de zaragatoas ditou um “positivo”, que excluiu o nosso Presidente de comparecer presencialmente no debate a sete, ficando bastante “irritado” por ter de seguir as regras da DGS que todos nós cumprimos – o que é estranho, visto o cabal e mais do que óbvio interesse que tem demonstrado para fazer campanha.

O que é que podemos retirar deste incidente? Num período em que paira a desconfiança em relação à pandemia e também à vacina, Marcelo e as autoridades de saúde deram uma bela lição de estupidez. Não nego nem nunca negarei que os resultados do teste ao Presidente poderiam influenciar decisivamente as campanhas dos candidatos que estiveram em contacto com Marcelo nos dias anteriores, nomeadamente Ana Gomes e André Ventura. Embora estas campanhas sejam vistas com grande desdém por boa parte da população, não deixam de constituir atos de informação de extrema importância para o voto consciente do eleitor. Pelos vistos, a campanha segue normalmente, caso “encerrado”.

Ainda assim, quatro testes em 48 horas não me parecem permitir grandes conclusões – acho que as autoridade de saúde estarão cientes disso -, tendo em conta, também, os resultados distintos – três negativos e um positivo – e os diferentes tipos de teste a que Marcelo foi sujeito. Aliás, está comprovado que o teste antigénio – o chamado “teste rápido” -, realizado pelo Presidente, apresenta um elevado risco de falibilidade, pelo que se aconselha fortemente à realização de um teste PCR. Ora, um dos testes PCR realizado deu “positivo” e, segundo as normas da DGS, dita-se o confinamento obrigatório.

Toda esta novela incoerente deixa no ar questões sobre a igualdade de tratamento no nosso país, assim como as suas prioridades. Marcelo Rebelo de Sousa teve direito a quatro testes, no espaço de dois dias. Numa confidência bastante pública que vos faço, dou o exemplo dos meus pais, profissionais de saúde, ambos enfermeiros, sendo a minha mãe, inclusivamente, enfermeira do Hospital de S. João – bastante “bem tratado” pela pandemia. Independentemente dos serviços e funções que desempenham, a verdade é que a Covid-19 não conhece fronteiras e, dada a natureza da sua profissão, o risco de contágio torna-se elevado.

Ora, tendo em conta a importância da saúde nesta altura, foram testados regularmente? Não. Apenas foram testados quando ambos contraíram a doença. Foram testados sucessivamente? Não. Tiveram de aguardar dez dias para o segundo teste – que, realço, apenas é feito a profissionais de saúde. Novidade? Continuavam ambos positivos. Fizeram terceiro teste? Não, uma vez que já não teriam direito ao mesmo. Dei o exemplo de profissionais de saúde, mas com pessoas de outras áreas nem segundo teste (comparticipado) existe.

Não coloco nem nunca colocarei as medidas de combate à pandemia em cheque. Aliás, concorde-se mais ou concorde-se menos, a tarefa do atual Governo é extremamente difícil e as autoridades de saúde têm dado as recomendações e indicações devidamente comprovadas e avaliadas periodicamente pelos profissionais e especialistas. Podemos e devemos ouvi-los se queremos sair deste buraco negro.

Mas ponho em causa o funcionamento da nossa Democracia e das nossas instituições e a ação dos nossos representantes, que parecem estar bem acima dos nossos direitos e liberdades. O Estado de Emergência veio suspender, temporariamente, várias das nossas liberdades. Mas foi o Governo, o Parlamento e o nosso Presidente que, deliberadamente e sem grande oposição aparente, decidiram retirar a liberdade de voto, uma das bases fulcrais da nossa Democracia, a milhares de portugueses. E quando submetidos à “normalidade”, admitem ficar “irritados”, num momento em que registamos mais de 100 mortes por dia devido à Covid-19, há pelo menos seis dias seguidos.