Daniel Silva
Sou estudante do sexto ano de Medicina na Universidade do Minho e a minha paixão por política é muito grande. Debruço-me frequentemente sobre questões relativas ao sistema americano, que considero o mais difícil e fascinante do mundo.
Era para ter deixado estas linhas para o dia 21 de janeiro, dia em que, pensávamos nós, acordaríamos já com Biden a ser o 46.º Presidente da História da “maior democracia do mundo”. A verdade, e independentemente das tentativas de “insurreição” – como chamou o Senador Mitt Romney -, é que isso irá acontecer. No entanto, a quantidade louca de acontecimentos do dia 6 de janeiro tornou impossível não haver uma crónica.
Em primeiro lugar, uma breve explicação para o título. A referência a duas datas com conotações religiosas não foi coincidência, muito menos a duas com um nome tão funesto. O dia começou com as eleições na Geórgia, que, no momento em que escrevo, terão mais do que certamente um desfecho azul, dando por terminada a maioria republicana no Senado. Por outro lado, à medida que o dia vai avançando, podemos ver que está a ser uma autêntica quarta-feira de cinzas para o GOP – literalmente, porque não só é, para o partido, pintada em tons de cinza, mas também porque é o que restará depois das labaredas mediáticas alimentadas por um presidente tresloucado.
O deprimente cenário que os apoiantes do presidente cessante Donald Trump pintaram nas ruas da cidade de Washington D.C., e principalmente no imponente e histórico Complexo do Capitólio, deixaram o mundo boquiaberto – muitos de nós julgavam ver imagens apensa repetíveis numa qualquer república africana ou latino-americana, onde cenários de rejeição acalorada de resultados eleitorais são, infelizmente, muito comuns. Mas não: o mundo via, em direto nos meios de comunicação social, centenas de pessoas munidas de faixas e algumas até de armas, violando um dos mais sagrados terrenos da democracia americana. Um grupo de nada mais nada menos do que “terroristas domésticos” invadiu a Rotunda do Capitólio e ameaçou as barricadas que haviam sido erguidas nas portas de ambas as Câmaras do Congresso.
Tudo isto começou, no entanto, muito mais cedo. Em última análise, podemos dizer até que este momento espelha uma narrativa falsa e alternativa do ainda presidente dos Estados Unidos, que maquinou astutamente os seus eleitores, levando-os a crer que a eleição foi roubada e que as instituições foram coniventes com a fraude que ele tanto aclama, mas que nunca provou. Mas, para todos os efeitos, consideremos que começou quando num rally que antecedeu a segunda volta para o Senado da Geórgia, apelou a que os seus apoiantes se manifestassem em frente ao Congresso e deu a entender que os acompanharia até lá – algo que não aconteceu.
O segundo ingrediente – que, neste caso, funcionou como querosene numa fogueira – foi o argumentário infantil e infundado de um grupo de senadores republicanos, liderados por Ted Cruz – sim, esse mesmo, a quem Trump chamou “maníaco” e “mentiroso” em 2016 – que teria como objetivo mostrar-se contra os resultados que, recordo, foram já certificados pelo Colégio Eleitoral.
O terceiro e último fator que contribuiu para que o clima já inflamado se agudizasse foi Mike Pence e a sua dignidade restante. Numa das últimas aparições públicas, Donald Trump disse que esperava que o seu vice-presidente fizesse o que devia e que invertesse o resultado a seu favor. Ora, não foi isso que o antigo governador do Indiana fez. Jurou, como Mitch McConnell antes fizera, lealdade aos princípios constitucionais do seu país, como qualquer pessoa com caráter. Obviamente, Pence não pode nem deve ser defendido, pois durante quatro anos alinhou com a política destrutiva de Trump; merece, porém, mérito na forma como mostrou resistência e alinhamento com os estatutos máximos da Nação.
Bernardo Pires de Lima, analista político da RTP, Diário de Notícias e Antena 1, lançou no debate um ponto interessantíssimo e muito relevante – entretanto já replicado por outros analistas e comentadores, incluindo Van Jones da CNN – sobre se isto representa o fim de um ciclo ou o início do outro. Fazendo jus a sua análise, com a qual aliás concordo, é um pouco de tudo. É aparentemente o fim de um ciclo que alimenta o início de outro.
A grande questão a levantar, que foquei já no texto anterior, é: “e agora, GOP?”. O rumo do partido republicano, em claro risco de cisalhamento interno, será um dos mais urgentes acontecimentos para o qual irá haver uma resposta. Avance quem avançar – Trump parece remoto e Ivanka não parece ter a pujança do pai – terá muito que provar e alguns cacos para juntar. De qualquer forma, neste Dia da Epifania, o GOP está nas cinzas, e Trump fica, ou hoje, ou nos próximos dias, finado.