Nos últimos dias, milhares de pessoas têm-se manifestado em frente à sede nacional do Partido Socialista Operário de Espanha (PSOE), em protesto contra a promessa de uma amnistia aos independentistas catalães, negociada no âmbito da constituição do novo governo espanhol.

O que tem motivado as manifestações?

Em outubro, Pedro Sánchez defendeu a controversa amnistia dos delitos na Catalunha durante o processo que culminou na declaração unilateral da independência da região em 2017. Tratou-se, assim, de mais um passo na aproximação aos partidos catalães para conseguir a maioria parlamentar que, por sua vez, permitiria formar um novo Governo.

“Em nome de Espanha, no interesse de Espanha, em defesa da coexistência entre os espanhóis, defendo hoje a amnistia na Catalunha pelos acontecimentos da última década” – Pedro Sánchez, líder do PSOE

O líder socialista assumiu que esta medida não integrava o seu programa eleitoral, o que motivou críticas por parte do Partido Popular (PP), que conseguiu o maior número de votos nas eleições de 23 de julho.

“Sempre soubemos que tínhamos de continuar no caminho da reunificação e que isso implicaria medidas adicionais. Defendi isso com os perdões, dizendo que eram um primeiro passo e que seriam necessários mais” – Pedro Sánchez, líder do PSOE

As manifestações contra a amnistia de políticos catalães têm ocorrido em várias cidades espanholas, tendo sido convocadas nas redes sociais e apoiadas pelo partido Vox. Os protestos, marcados por símbolos, cânticos e gestos fascistas e da ditadura espanhola de Franco, têm acabado em confrontos entre os manifestantes e as forças policiais.

As forças políticas da direita espanhola consideram que a amnistia aos independentistas catalães que protagonizaram a tentativa de autodeterminação da Catalunha em 2017 pode constituir um ataque ao Estado de direito e ao princípio da separação de poderes.

O PSOE realçou que a amnistia já foi considerada legal pelo Tribunal Constitucional espanhol, em 1986, que já foi aplicada no país em 1976 e 1977 e está também “perfeitamente homologada” nas instâncias europeias e pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.

O partido socialista foi a segunda força mais votada nas eleições legislativas de julho e Sánchez prepara-se para ser reconduzido chefe do Governo com o apoio de oito partidos de esquerda e de direita, nacionalistas, regionalistas e independentistas.

Os socialistas vão assumir o governo em coligação com o Sumar, uma plataforma de 15 partidos e movimentos à esquerda dos socialistas, liderada por Yolanda Díaz, atual ministra do Trabalho.

Sem o apoio dos partidos catalães pró-independentistas, Juntos pela Catalunha (JxCat) e Esquerda Republicana da Catalunha (ERC), o PSOE não conseguiria obter os 176 lugares necessários no parlamento para que Sánchez tome posse como primeiro-ministro na primeira votação.

O que muda com a nova lei de amnistia?

A lei da amnistia visa anular a “responsabilidade penal, administrativa e financeira” de todos os indivíduos que cometeram delitos relacionados com o processo independentista da Catalunha durante o período entre 1 de janeiro de 2012 e 13 de novembro de 2023.

Esta lei beneficiará as mais altas figuras do independentismo catalão e os cidadãos comuns. Desta forma, Carles Puigdemont poderá regressar a Espanha sem ter de enfrentar a justiça. Os polícias imputados por repressão violenta também deixam de estar sujeitos aos processos judiciais, bem como os cidadãos que colocaram as urnas de votação do referendo de 1 de outubro de 2017.

“Para os que tiveram um processo judicial, cancelam-se as sanções e os antecedentes. Para os que têm um processo aberto, põe-se fim a esse processo. Trata-se de devolver à política aquilo que nunca deveria ter saído da política” – Félix Bolaños, ministro da Presidência de Espanha

Pedro Sánchez e Carles Puigdemont em 2016 | Fotos: Albert Garcia/El País

No entanto, a amnistia não indemnizará os condenados que já tenham cumprido penas de prisão e não terá qualquer efeito em atos semelhantes que possam ocorrer no futuro.

Além disso, fora da amnistia ficam os atos que tenham resultado na “morte, aborto ou lesões no feto, a perda ou inutilização de um órgão ou membro, a perda ou inutilização de um sentido, impotência, esterilidade, ou deformação“. A lei também exclui os delitos de torturas ou trato desumano. Da mesma forma, também não serão amnistiados os delitos de terrorismo desde que contem com uma sentença definitiva.

O referendo ilegal para a independência da Catalunha

À semelhança de todas as regiões autónomas de Espanha, também a Catalunha tem o seu próprio parlamento, eleito em eleições autónomas. As eleições catalãs de 2015 foram marcadas pela dicotomia do pró e contra um referendo à independência. Nesse sentido, foi formada a coligação Juntos pelo Sim, cujo principal objetivo era a defesa da realização de um referendo à independência da Catalunha. Nessas eleições, os partidos independentistas acabaram por formar uma maioria de deputados, mas não de eleitores. Assim, a coligação venceu as eleições, mas sem maioria absoluta.

Após a nomeação de Carles Puigdemont para presidente do governo regional da Catalunha, a coligação aprovou todas as votações que levaram até à marcação do referendo de 1 de outubro de 2017. Ainda que tenham sido levantadas várias dúvidas quanto à constitucionalidade do referendo, Puigdemont rejeitou ter desobedecido aos tribunais e salientou que estaria a “obedecer ao parlamento da Catalunha”.

Apesar de toda a especulação, a 1 de outubro foi realizado o referendo para a independência daquela região. Os resultados divulgados foram claros: 43% dos cidadãos catalães foram votar e uma maioria de 90% escolheu a independência da Catalunha.

Os resultados levaram Puigdemont a pedir à União Europeia que mediasse o conflito entre o governo regional e o Governo central, liderado naquela altura por Mariano Rajoy. Contudo, a única resposta de Bruxelas foi dirigida a Madrid. Numa primeira fase, Puigdemont declarou a independência da Catalunha e, segundos depois, suspendeu-a para iniciar negociações com Madrid. Uma vez que Mariano Rajoy não estava disposto a negociar a independência da região, Puigdemont entregou a decisão da declaração da independência ao parlamento catalão.

Por conseguinte, a votação aconteceu a 27 de outubro e uma maioria de 70 deputados votou favoravelmente à independência da Catalunha. Durante a votação, os deputados constitucionalistas abandonaram o hemiciclo em protesto, recusando reconhecer a legalidade daquela cerimónia. Por outro lado, para os independentistas, estava a ser respeitada a vontade dos cidadãos catalães.

Dada a ilegalidade do referendo de autodeterminação catalã, Mariano Rajoy decidiu dissolver o parlamento da Catalunha e destituir o executivo regional presidido por Carles Puigdemont.

A acusação, detenção e o perdão de Puigdemont

Após a sua exoneração da presidência do governo regional da Catalunha, Puigdemont foi acusado pela justiça espanhola de peculato (pelo uso de verbas públicas para organizar o referendo ilegal sobre a independência da Catalunha), e desobediência. Depois de ter sido acusado, o político deixou o seu país e passou a viver na Bélgica para fugir à justiça espanhola.

Nas eleições europeias de 2019, Puigdemont foi eleito pelo partido Juntos pela Catalunha para exercer as funções de eurodeputado no Parlamento Europeu.

A pedido do Supremo Tribunal de Espanha, em março de 2021, o Tribunal Geral da União Europeia (TGUE) retirou a imunidade parlamentar a três eurodeputados espanhóis, incluindo Carles Puigdemont. Os três eurodeputados apresentaram um pedido para que a sua imunidade fosse restaurada. O pedido foi aceite pelo TGUE numa primeira decisão a 2 de junho do mesmo ano, mas posteriormente revogada, em 30 de julho, considerando que não corriam o risco de serem detidos.

Os três eurodeputados recorreram desta decisão junto do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), que decidiu a seu favor em maio de 2022, concedendo-lhes imunidade provisoriamente, até à emissão de uma sentença definitiva.

Em Setembro de 2021, numa viagem à Sardenha, o ex-presidente catalão foi detido na sequência de um mandato internacional de captura emitido pelo Supremo Tribunal de Espanha. Puigdemont foi apresentado a tribunal, que considerou que a sua prisão foi efectuada de acordo com a lei, mas optou por deixá-lo em liberdade sem quaisquer medidas cautelares.

Em julho de 2023, a justiça europeia retirou novamente a imunidade parlamentar ao ex-presidente do governo regional catalão. Em resposta à decisão judicial europeia, Puigdemont admitiu a apresentação de recurso perante o TJUE.

“Nada acaba, pelo contrário. Tudo continua. Apresentaremos recurso perante o Tribunal de Justiça da UE” – Carles Puigdemont, ex-presidente do governo regional da Catalunha

Após as eleições legislativas de julho de 2023, Puigdemont, líder do Juntos pela Catalunha (JxCat), exigiu a lei da amnistia para os independentistas catalães, defendendo a sua compatibilidade com a Constituição espanhola. Recentemente, em 28 de outubro passado, numa intervenção perante o Comité Federal do PSOE, Pedro Sánchez defendeu a nova lei da amnistia. O líder do PSOE justificou a amnistia com a necessidade de “fortalecer” o reencontro entre Espanha e a Catalunha. Desta forma, o PSOE e o JxCat assinaram um acordo para a viabilização de um novo executivo de esquerda em Espanha.

A investidura de Sánchez para primeiro-ministro

Quatro meses depois de ter perdido as eleições para o Partido Popular, Pedro Sánchez conseguiu a maioria parlamentar com os votos do PSOE, do partido de extrema-esquerda SUMAR, dos partidos bascos PNV e EH Bildu, do BNG da Galiza, da Coligação Canária (CC) e dos partidos catalães pró-independentistas JxCat e ERC que o elegeram para liderar o país. O líder do PSOE conseguiu, assim, obter os votos de 179 deputados, ou seja, mais do que 176 votos necessários para obter maioria absoluta, depois de ter feito acordos com os partidos regionalistas e de ter decidido conceder uma amnistia aos independentistas catalães em troca do seu apoio, o que motivou fortes protestos por todo o país nos últimos dias.

O partido conservador PP, liderado por Alberto Feijoó, da extrema-direita Vox, de Santiago Abascal, e a União Popular votaram contra a investidura de Sánchez, contabilizando 171 votos no total.

Desta feita, Pedro Sánchez formou um novo governo de coligação com o partido de extrema-esquerda Sumar, de Yolanda Díaz, sua segunda vice-primeira-ministra no governo anterior e foi empossado pelo rei Felipe VI, no passado dia 17.

Apesar de ter conseguido reunir o apoio de diversos partidos políticos, Pedro Sánchez não terá um mandato fácil e sereno. Os resultados eleitorais de julho mostram que a sociedade espanhola está dividida e polarizada, como se veio a verificar com os protestos que têm ocorrido nas últimas semanas.

Editado por Inês Silva