Quando olha para o futuro da educação em Portugal, Filinto Lima prevê uma jornada buliçosa. Compara-a a uma “pandemia”, provocada por um vírus há muito entranhado no sistema e que, a cada ano que passa, deixa mais vítimas pelo caminho. Já nos anos 80 e 90, Portugal tinha sofrido de uma carência de professores, em que se recorria aos que tinham apenas habilitações mínimas para tapar os fossos que a desvalorização e pouca dignificação da profissão provocou. Filinto deixa a questão no ar: “Jovens, querem professores desqualificados para os vossos filhos, no futuro?”

A falta de aposta política nesta classe e sistema parece ser o eixo em que se desenvolvem os vários problemas da educação portuguesa, discutidos em cerca de hora e meia na nona Political Talks da Academia de Política Apartidária: “Educar o Presente para Formar o Amanhã”. À visão prática de Filinto, presidente da Associação Nacional de Diretores de Escolas e Agrupamentos Públicos (ANDAEP), aliou-se a teoria de Alexandre Homem Cristo, reputado pensador da área da educação e ex-assessor da Assembleia da República (AR), para discutir os passos que são necessários dar para manter o sistema vivo.

Uma profissão “desvalorizada e pouco dignificada”

Desvalorizar o “trabalho notável” que tem sido feito ao nível da educação em Portugal é desonesto, segundo Alexandre Homem Cristo. Portugal começou de um ponto de partida “muito baixo”, propulsionado por um regime ditatorial que se alastrou por mais de meio século na história do país. “Neste momento, estamos a competir com países que têm um ensino democrático há 100 anos”, afirma o ex-assessor, ao que Filinto Lima acrescenta a performance portuguesa nas avaliações internacionais: “Nos testes PISA, temos tido bons resultados nos últimos anos. Estamos na média de vários indicadores”.

“Temos um sistema educativo tirano, um sistema que não está a cativar professores”, lamenta Filinto Lima.

Mas esse trabalho pode vir a ser ameaçado pela falta de atratividade do sistema. De acordo com o presidente da ANDAEP, nos próximos 10 anos, estima-se que 58% dos professores portugueses se irão aposentar, o que não vai ser acompanhado por uma renovação dos quadros. “Temos um sistema educativo tirano, um sistema que não está a cativar professores e, mesmo os dos quadros efetivos põem licenças sem vencimento, porque querem experimentar outras áreas. Se forem felizes, ficam por lá”, explica Filinto Lima, alertando ainda para a falta de “indícios” que revelem que o Ministério da Educação esteja a tentar resolver o problema.

“Não vemos a Assembleia da República, nem os partidos a falar sobre isto”, acrescenta Alexandre Homem Cristo, utilizando a analogia de um carro que se está a aproximar da parede ao poucos e cuja solução se vai adiando até bater, de forma a descrever o estado atual do sistema educativo português. “As alterações que se fazem no sistema educativo demoram a produzir resultados. É preciso pensar a longo-prazo para as coisas terem um avanço substantivo.”

“Todos os anos vamos perder às pinguinhas muitos professores e este vazio não é preenchido”, constata Alexandre Homem Cristo.

Basicamente, é necessário apostar num modelo de carreira “mais flexível, atrativo e bem remunerado no início da carreira”, bem como “derrubar a estrutura de seleção” dos professores, ainda concentrada numa lista única nacional, afirma Alexandre. “Em Portugal, os diretores não escolhem os professores, ao contrário de muitos países europeus”, complementa Filinto, num exercício de descentralização, que permitiria uma maior competição entre professores.

Sem estes incentivos, torna-se complicado atrair recém-licenciados para a área – um problema que já está a ganhar tração em algumas disciplinas, que, em poucos anos, vão ficar sem professores. “Todos os anos vamos perder às pinguinhas muitos professores e este vazio não é preenchido”, reitera Alexandre Homem Cristo.

A transição desigual

As consequências da eventual “pandemia” do setor educativo são óbvias a nível de conhecimento e preparação dos alunos para o mercado de trabalho, mas é necessário atentar também para o seu papel civilizador. “A escola é socialização, não só transmitir conhecimentos. É alguém cair e ir para o hospital, ir comer à cantina e dizer mal da comida – muitas vezes de forma injusta”, reflete Filinto Lima. Com a chegada da pandemia, o presidente da ANDAEP tomou conhecimento de vários pais que precisaram de pôr os seus filhos em acompanhamento psicológico, devido a um “mau estar” que o confinamento provocou.

“A socialização pode ser ainda mais importante que os conhecimentos adquiridos”, confessa, relembrando o conceito de “elevador social”. Segundo Alexandre Homem Cristo, esta é a “matriz” do sistema educativo: ajudar os estudantes que provêm de classes mais baixas e sem meios e capacidades a chegarem mais longe, uma vez que “as famílias dependem da escola para isto” – uma batalha que Portugal parece estar a perder, segundo as estatísticas.

“Que me interessa a mim dar a um aluno um computador espécie Ferrari e dizer que só o podes conduzir num caminho de cabras?”, indaga o presidente da ANDAEP.

De acordo com um relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), intitulado “Broken Social Elevator?”, o país está na “cauda” da Europa no que diz respeito à mobilidade educativa. “Isto quer dizer que os filhos dos mais pobres e menos qualificados têm uma grande probabilidade de o continuar a ser na sua geração”, em comparação com as classes mais privilegiadas da sociedade, que se vão manter no “topo do edifício”. Com a chegada da pandemia, o elevador social começou a ser movido à distância, o que o tornou muito mais lento e desigual.

“Fico sempre muito indignado quando ouço dizer que ‘ah, é importante o aluno ter um computador para poder assistir às aulas’. Claro, mas também é importante o aluno ter uma mesa. Há vários alunos que não têm condições de trabalho em casa”, acrescenta Filito Lima, deixando críticas à forma “eufórica” com que a transição digital no ensino foi apresentada por António Costa. “Que me interessa a mim dar a um aluno um computador espécie Ferrari e dizer que só o podes conduzir num caminho de cabras?”, indaga o também professor.

Já Alexandre Homem Cristo acredita que não passa tudo de um “slogan”, ainda por materializar, e que traz consigo uma questão fundamental que ainda não teve uma resposta social e política. O antigo conselheiro do Conselho Nacional de Educação critica ainda algumas ideias generalizadas sobre o assunto: “Há duas coisas [a] que eu ganhei intolerância durante a pandemia: ‘isto [o ensino à distância] não faz mal nenhum aos alunos, é só recomeçar’ e ‘todo o país tem acesso à internet’.” Segundo o antigo assessor, Portugal é o segundo país da União Europeia que mais diferenças tem entre o número de agregados familiares com acesso à internet em zonas urbanas e zonas rurais – “só a Grécia está pior” -, o que espelha um “país muito desigual em termos de acesso à internet”, remata.

A problemática do acesso ao ensino superior

O ensino superior também foi alvo de algumas reflexões por parte dos dois convidados desta Political Talks, principalmente quanto às condições de acesso. Filinto Lima depara-se, muitas vezes, com professores do ensino universitário a acusarem os do básico e secundário de falta de preparação dos alunos – uma realidade que considera plausível, mas não de razão única. “Também advém do modo de acesso. O ensino secundário deverá ser terminal e certificante. Deviam ser as faculdades a tratar do acesso ao [ensino] superior” e parar com a dependência de avaliações de três anos (10º, 11º e 12º) e exames nacionais que “afunilam conhecimentos”.

“É preciso, então, encontrar um equilíbrio para que a solução seja o menos desigual possível”, conclui o antigo assessor da AR.

Por entre críticas à indisponibilidade dos reitores em mudar esta realidade, Filinto sugere outros critérios para o acesso às faculdades, como currículo, participação em organizações e desportos. Alexandre concorda teoricamente com a ideia, mas, analisada a fundo, acredita que se tornaria em mais uma forma de promover a desigualdade social, afastando os alunos menos privilegiados das melhores faculdades. “Quem tem uma maior participação nestas organizações de voluntariado? Famílias de média e alta classe, porque são estes alunos que têm dinheiro para o fazer, que têm uma cultura familiar que o promova”, afirma.

Segundo o antigo assessor, o critério de exames e média, embora “imperfeito” e a necessitar de “vários ajustes”, é o menos desigual, porque faz com que todos os alunos estudem o mesmo currículo, embora também se levante a questão de apoios externos, como explicações, que nem todos têm acesso. “É preciso, então, encontrar um equilíbrio para que a solução seja o menos desigual possível”, conclui Alexandre.

 

Se queres saber mais sobre o futuro da educação em Portugal, a transição digital no ensino e modelos de acesso ao ensino superior, vê aqui a versão completa da nona Political Talks:

Revisto por Pedro Valente Lima.