“Fantasiosa”, “inócua”, “especulativa” e “incoerente”. O juiz Ivo Rosa não poupou críticas à acusação do Ministério Público no âmbito da Operação Marquês, transformando-a apenas em pólvora num rastilho que remonta a 2013. Das 189 imputações que o MP fez a 28 arguidos – nove deles empresas -, apenas 17 sobreviveram às machadadas que Ivo Rosa deu à acusação.

José Sócrates, antigo primeiro-ministro português e figura central do caso, viu encolher de 31 para seis o número de crimes que terá de responder em julgamento e nenhum deles será por corrupção – o que se alastra para o quadro geral da acusação. Caíram as acusações de nove crimes de branqueamento de capitais, todos os de corrupção, três de fraude fiscal e outros três de falsificação de documentos.

Durante a leitura da decisão instrutória da Operação Marquês, o juiz pronunciou que os crimes de corrupção imputados a Sócrates estariam prescritos, para além de ter sublinhado que a acusação não apresentou provas concretas de que o antigo governante tivesse favorecido os grupos Lena e Espírito Santo, ou interferido no financiamento dado pela Caixa Geral de Depósitos a um grupo de acionistas na compra do empreendimento Vale do Lobo, no Algarve. Sócrates deverá, então, ser julgado apenas por três crimes de branqueamento de capitais e três de falsificação de documentos, caso o recurso que o procurador Rosário Teixeira do MP apresentou ao Tribunal de Relação de Lisboa não altere a decisão instrutória de Ivo Rosa.

No entanto, o antigo primeiro-ministro não saiu, completamente, ileso nas questões de corrupção. A credibilidade da tese de que Sócrates apenas recebia dinheiro emprestado de Carlos Santos Silva, o seu testa de ferro, segundo o MP, e outro dos envolvidos na Operação Marquês, foi várias vezes atacada por Ivo Rosa durante as mais de três horas e meia que esteve a ler o resumo da decisão instrutória, cuja versão original tem quase sete mil páginas. O juiz considerou que os cerca de 1,7 milhões de euros que Sócrates recebeu do amigo foram contrapartidas “suscetíveis de preencher um crime de corrupção passiva de titular de cargo político sem demonstração de ato concreto”, embora já tenha prescrito.

“O modo como as entregas em numerário, bem como os pagamentos, foram realizados, o modo como foram usufruídos, nomeadamente com a interposição de terceiros, e o facto de o arguido Carlos Santos Silva exercer funções no domínio da angariação de obras, projetos e solução de dificuldades do Grupo Lena junto de clientes, levam-nos a presumir que as entregas em numerário tinham como objetivo criar um clima geral de simpatia ou de permeabilidade por parte do primeiro-ministro”, afirmou o magistrado.

A prescrição do ato não impediu que o juiz da fase de instrução imputasse crimes subjacentes, nomeadamente de lavagem de dinheiro sujo – daí os seis crimes que devem levar Sócrates a julgamento. Caso estes ilícitos sejam confirmados, o primeiro-ministro pode ser punido com uma pena de prisão que ascende aos 12 anos, considerando que os crimes de branqueamento de capitais oscilam entre os dois e 12 anos de pena de prisão, enquanto os de falsificação de documentos podem representar um máximo de três anos de cadeia.

“Todas as grandes mentiras da acusação hoje caíram”

À saída do Campus da Justiça, em Lisboa, Sócrates declarou, com algum alívio e sorriso triunfante, que “todas as grandes mentiras da acusação hoje caíram”. “A acusação da fortuna escondida é uma mentira. A acusação da corrupção é mentira. A acusação de uma ligação com Ricardo Salgado é completamente mentira. Todos vocês puderam ouvir as palavras do juiz”, argumentou o antigo primeiro-ministro.

Usurpando algumas palavras usadas por Ivo Rosa na declaração de instrução, Sócrates afirma que houve “especulação, efabulação, construção de suposições em cima de suposições”, razões que acabaram por fazer com que as acusações do MP ruíssem. “Tudo isso acabou”, acrescentou o antigo líder socialista.

Já em relação aos crimes pelos quais o juiz de instrução quer levar Sócrates a julgamento, o antigo governante reafirma que não são verdade e que se irá defender: “O juiz Ivo Rosa levanta dúvidas sobre a questão dos empréstimos, chega à conclusão de que há indícios que podem contrariar o que eu digo, mas o que digo é verdade e vou defender-me”, repetiu.

Para Sócrates, existe uma “motivação política” por detrás da acusação e foi essa a única razão que levou à prisão e difamação “durante sete anos de um inocente”. Aproveitou ainda para atirar responsabilidades aos jornalistas que seguiram o caso, sugerindo que é tempo para uma “autoavaliação” da profissão: “Nada disto teria chegado a este ponto se o jornalismo tivesse cumprido o seu dever”, criticou.

Entre repetições de acusações de manipulação, falta de objetividade e isenção, Sócrates deixou no ar um possível retorno à política, embora não queira “partilhar isso com ninguém”. “Isso diz-me respeito a mim e ao diálogo comigo mesmo. Agora tratemos deste processo”, resumiu.

“Prenderam e difamaram durante sete anos um inocente”, afirma José Sócrates, antigo primeiro-ministro.

A defesa do antigo governante pondera, agora, recorrer da decisão instrutória desta sexta-feira para o Tribunal de Relação de Lisboa – tal como o Ministério Público -, embora vários penalistas, ouvidos pelo jornal Público, consideram que nem José Sócrates, nem os restantes arguidos têm direito de o fazer. Segundo o advogado Magalhães e Silva, uma vez que o juiz de instrução os remeteu para julgamento nos mesmos termos da acusação do MP, não há bases para qualquer recurso.

Uma tese que o advogado de Sócrates contraria. Pedro Delille afirma que “a pronúncia não foi feita nos exatos termos da acusação. O juiz Ivo Rosa falou de um crime que não existia na acusação, corrupção para ato não concreto e creio que de mais um crime de branqueamento”, ressalvando que ainda vai ler melhor a decisão instrutória de Ivo Rosa e esperar que o Ministério Público apresente o seu recurso.

A outra face da Operação Marquês

Apesar de Sócrates ter roubado os holofotes desta operação, o antigo primeiro-ministro não era o único nome sonante envolvido na lista de acusações. Para além do amigo Carlos Santos Silva, Ricardo Salgado, ex-presidente do BES, e Armando Vara, antigo ministro e administrador da Caixa Geral de Depósitos, fazem parte do role de acusados pelo Ministério Público que, agora, terão de responder por vários crimes, a que se junta também o ex-motorista de Sócrates, João Perna.

Acusado de 21 crimes, Ricardo Salgado viu as suas imputações mitigadas para três de abuso de confiança, deixando para trás crimes de corrupção ativa de titular de cargo político (um), corrupção ativa (dois), branqueamento de capitais (nove), falsificação de documento (três) e fraude fiscal qualificada (três). Pode-se dizer que é uma pequena vitória para o antigo banqueiro que continua com a justiça “à partida perna”, tendo ainda que enfrentar o Ministério Público em três frentes, o Banco de Portugal em cinco e a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) em duas.

“A acusação não contém a narrativa dos factos passíveis de integrar todos os elementos objetivos e subjetivos dos crimes de administração danosa e infidelidade”, diz Ivo Rosa, sobre os crimes imputados a Henrique Granadeiro e Zeinal Bava.

Entre os restantes arguidos que vão fazer companhia a José Sócrates e Ricardo Salgado, o empresário Carlos Santos Silva segue para julgamento sob três acusações de branqueamento de capitais e três crimes de falsificação de documentos, Armando Vara irá responder por uma acusação de branqueamento de capitais e o motorista João Perna vai ser julgado por detenção de arma proibida.

Por outro lado, os outros 14 suspeitos – no que toca a personalidades singulares – da Operação Marquês, entre os quais se apresentam os antigos administradores da Portugal Telecom (PT), Henrique Granadeiro e Zeinal Bava, viram todas as acusações contra si levantadas, pelos mesmos motivos dos outros arguidos – falta de provas e prescrição – e questões formais.

Ivo Rosa entendeu que os antigos gestores da empresa de telecomunicações não podiam ser acusados de corrupção por motivos formais, já que não têm estatuto de funcionário – uma tese que vai contra a conclusão do processo Face Oculta, onde foi estabelecido que, mesmo que os arguidos trabalhem numa empresa que não está diretamente ligada ao Estado, basta integrar um grupo que tenha como atividade principal um serviço público, como acontecia então com a PT, para os seus administradores serem considerados funcionários para efeitos penais.

O juiz acabou por culpar o Ministério Público por não poder levar estes dois arguidos a julgamento no episódio de um investimento ruinoso de 900 milhões de euros da PT na Rioforte, uma empresa do grupo Espírito Santo, entretanto já falida. ​“A acusação não contém a narrativa dos factos passíveis de integrar todos os elementos objetivos e subjetivos dos crimes de administração danosa e infidelidade, sendo que nesta fase o tribunal está impedido de fazer uma alteração dos factos descritos na acusação, por forma a que dela pudessem constar os factos em falta”, conclui.

No seguimento desta pronúncia, o procurador Rosário Teixeira anunciou a intenção do Ministério Público em recorrer ao Tribunal da Relação de Lisboa. O organismo estatal pede 120 dias para apresentar recurso desta decisão instrutória.

Editado por Pedro Valente Lima.