Há pouco mais de uma semana, cerca de 4 milhões e 300 mil portugueses saíram à rua livremente para exercer um dos seus direitos fundamentais: o direito ao voto. Desde aí, a vida política portuguesa tem andado ao rubro, ao ponto de fazer as eleições presidenciais parecer uma realidade distante.

Num país com uma economia praticamente parada e onde os movimentos estão restringidos, a máquina política parece estar mais oleada do que nunca – e só uma figura parece ser constante na mente dos portugueses: o Presidente, Marcelo Rebelo de Sousa.

Eleito com mais de 60% de votos, a 24 de janeiro, o apelidado “candidato vencedor”, desde o início, confirmou quase todas as previsões e cimentou o seu lugar, com uma vitória inédita em todos os concelhos do país. Dados os factos, este ano a corrida eleitoral mais interessante centrou-se no segundo lugar. Ana Gomes conseguiu a prata por uma pequena, mas certa, distância em relação a André Ventura, que veio a jogo confirmar que Portugal não era um país livre da ascensão da extrema-direita na Europa.

É com isto tudo em mente que se realizou a quinta Political Talks da Academia de Política Apartidária, protagonizada por Pedro Filipe Soares, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, e João Miguel Tavares, cronista no Público e um dos quatro comentadores do Governo Sombra. Em pouco mais de uma hora  – e com algumas interferências pelo meio – discutiu-se a abstenção, os vencedores, os vencidos e os “nims” das eleições, o que esperar de Marcelo no mandato que agora inicia e o futuro da democracia portuguesa, com o Chega no centro da discussão.

Um desastre evitado

Nestas eleições atípicas, antes de se prever resultados, previa-se abstenção. O clima pandémico que marca Portugal há cerca de um ano, aliado ao escrutínio de uma possível reeleição – que indiciaria uma menor corrida às urnas -, fez com que algumas projeções apontassem para os 70% de não participação.

Para João Miguel Tavares, os números finais foram uma verdadeira surpresa. “A abstenção foi bastante alta, mas fomos todos agradavelmente surpreendidos – esperávamos que fosse muito pior”, afirma, antes de referir que, devido ao recenseamento automático dos emigrantes, os cadernos eleitorais tiveram muitas mais pessoas, o que não representa uma abstenção real. Em território nacional, esta foi de 55,5% – dentro dos valores usualmente registados.

Pedro Filipe Soares adiciona que “centenas de milhares de pessoas foram impedidas de votar” ao se encontrarem em isolamento obrigatório, o que teve um “impacto real na abstenção”. No entanto, realça que “as eleições foram marcadas pela pandemia, mas não foram definidas” por esta crise, mesmo com algumas vozes que as ameaçavam descredibilizar.

O voto eletrónico é ainda uma realidade longínqua em Portugal. Ilustração: STOCK IMAGE

Quanto ao que se pode fazer para melhorar o exercício de voto nas próximas eleições, os dois intervenientes acabam por concordar em alguns pontos. O voto por correspondência não presencial traz algumas questões à tona, como a possibilidade de alguém votar em nome de outra pessoa ou existir coerção política ou em climas de violência doméstica para mudar o sentido de voto de alguém, aponta Pedro Filipe Soares. Já o voto eletrónico, parece ser um “passo maior do que a perna” para João Miguel Tavares.

Mesmo assim, há certos caminhos que podem ser adotados para melhor a participação portuguesa nos atos eleitorais. O líder parlamentar do BE aponta dois: alargar o voto a pessoas com mais de 16 anos e permitir o voto às comunidades imigrantes em Portugal.

Entre vencedores e vencidos

Marcelo Rebelo de Sousa saiu das eleições com o seu poder reforçado – mais 120 mil portugueses votaram no candidato, quando comparado com as Presidenciais de 2016. Esta margem aufere quase tantos como os que Vitorino Silva obteve em 2021.

O facto de o atual Presidente da República ter sido dado como vencedor, desde o primeiro dia, permitiu, segundo Pedro Filipe Soares, que se abrisse um espaço à direita para esta fragmentar os seus votos entre candidatos.

João Miguel Tavares considera mesmo que os candidatos apoiados pela Iniciativa Liberal e pelo Chega poderiam ter sido dois dos vencedores da noite, mas Ventura perdeu esse posto, devido à elevada fasquia que colocou. Para o cronista do Público, Tiago Mayan foi a surpresa da noite, ao triplicar os votos que o partido liberal obteve nas Legislativas – o que, mesmo assim, parece não ter sido suficiente para algumas pessoas da IL, aos olhos do jornalista.

No mesmo terreno de André Ventura está Ana Gomes. A candidata não obteve uma grande votação e, apesar de ter conseguido bater o adversário de extrema-direita, não conseguiu ficar perto de um dos seus objetivos: uma segunda volta. Para Pedro Filipe Soares, um eventual apoio do PS à antiga eurodeputada poderia ter aumentado a sua votação, mas nunca ao ponto de trazer Marcelo abaixo dos 50%. Até porque, quem sairia mais afetado com isto seriam “as candidaturas de direita, cujo eleitorado se via a obrigado a apoiar o Marcelo” e não poderia votar em Mayan ou Ventura.

Tino de Rans não mereceu grande destaque analítico. O candidato teve menos votos do que em 2016, mas, “num campeonato dos pequeninos”, “deve ter ficado satisfeito com isso”, afirma João Miguel Tavares.

Na sua ótica, o “nim” desta corrida a Belém foi protagonizado por João Ferreira. Apesar de ter tido apenas 4,32% dos votos – um resultado não muito maior que o de Edgar Silva há cinco anos -, conseguiu ganhar no campeonato PCP-BE, contra Marisa Matias.

E foi na análise desta candidatura que os dois intervenientes mais se alongaram. Enquanto o comentador do Governo Sombra acredita que a campanha de Marisa foi mais fraca do que a anterior e a presença de Ana Gomes roubou-lhe parte do eleitorado, Pedro Filipe Soares afirma que quem roubou mais votos à candidata de esquerda foi Marcelo Rebelo de Sousa. “Muita gente que vota no Bloco considerou que Marcelo seria neutral no projeto que o partido defende”, afirma. Segundo o companheiro de partido, Marisa falhou em afirmar uma identidade coletiva do seu partido, não conseguindo chegar ao seu eleitorado na totalidade.

O que esperar dos próximos cinco anos?

É difícil responder à pergunta devido às consequências imensuráveis que a pandemia pode trazer ao país. João Miguel Tavares e Pedro Filipe Soares não se aventuram no caminho da previsão, mas têm a certeza de uma coisa: a “bomba atómica” da dissolução do Governo, se as circunstâncias se mantiverem, não vai ser usada pelo Presidente. A nível de razões, os dois divergem: enquanto o cronista do Público acredita que Marcelo não tem qualquer vontade de exercer o seu poder – mesmo sendo o “político mais poderoso do país” -, o líder parlamentar do BE acredita que não o vai fazer pelo contexto: “se o Marcelo carregar agora na bomba atómica, as novas eleições vão trazer um Parlamento igual”. E esta atitude pode-lhe trazer uma vantagem a longo-prazo: um presidencialismo interventivo, na formação do próximo Governo.

A curto-prazo, Pedro Filipe Soares destaca o projeto-lei da eutanásia, que acredita que vai ser levado ao Tribunal Constitucional, porque o Presidente não tem interesse em fazer um veto político. Se for aprovado, Marcelo pode “lavar as mãos” e ganhar credibilidade social no seu eleitorado – importante para eventuais confrontos com o Governo. Para além disso, o também deputado acredita que as Autárquicas não vão ter grande impacto no mandato de Marcelo, mas sim na relação entre partidos.

A conversa “entusiasmante” que o Chega traz à mesa

O “extremar das posições políticas”, como define João Miguel Tavares, tem justificado a atenção que o partido de André Ventura capta para si. Num sistema político que tem um “equilíbrio único” – desde a Assembleia Constituinte, os partidos que têm revezado no poder foram o PS e o PSD -, o Chega vem quebrar esta estabilidade, e “isso torna-o notícia” para o comentador do Governo Sombra. Podemos estar a assistir uma reestruturação na democracia portuguesa, mas Tavares não acredita que o partido de extrema-direita tenha “uma grande matéria política e estabilidade interna” para trazer uma rutura.

Já Pedro Filipe Soares acredita que, pelo menos, o programa do Chega pode trazer estragos para a democracia, até porque não estamos perante “pequenas revisões constitucionais, mas sim um golpe na Constituição”. O líder parlamentar afirma que a posição do Marcelo face à legalização do partido de André Ventura e a sua “normalização” nos Açores foi “defensiva”, durante a campanha eleitoral.

A participação que Ana Gomes fez na Procuradoria-Geral da República, sobre a legalização do Chega, trouxe novamente o assunto “à baila” e as posições dos dois intervenientes desta Political Talks não podiam ser mais diferentes.

João Miguel Tavares não concorda com a ilegalização, embora afirme que André Ventura passa “linhas vermelhas quando pede confinamentos étnicos” ou questiona resultados eleitorais. Em sentido contrário vai o líder parlamentar do BE. Pedro Filipe Soares não tem problemas em dizer que “gostava que o Chega fosse ilegalizado”, mas tem “dúvidas que isso aconteça”.

E é neste ponto que os dois voltam a converger: no ponto de vista legal, é muito difícil ilegalizar um partido. A Constituição permite que isto aconteça quando um partido é fascista ou quando é constituído por milícias – o que o Chega não tem. Aqui, João Miguel Tavares deixa um desafio: “boa sorte em provar isso”.

 

Se queres saber mais sobre esta análise dos resultados das Presidenciais, o futuro mandato de Marcelo Rebelo de Sousa e o impacto do Chega na democracia, vê aqui a versão completa da quinta Political Talks:

Revisto por Pedro Valente Lima.