Foi por chats e fóruns online que nasceram. Confrontados com uma pandemia inesperada, que abalou todos os alicerces sociais e económicos que conhecemos, um grupo de estudantes decidiu tentar encontrar respostas para os problemas que sentiam – e ainda sentem – na pele, com um verdadeiro toque da Geração Z na sua formação.

Com vários membros pelo país, a plataforma estudantil conta já com dezenas de estudantes. Surgiram rapidamente: um mês depois de a pandemia engrossar as quatro paredes das nossas casas, tornando-as um sinónimo de prisão, cinco estudantes viraram-se para a única forma que tinham de interagir com o mundo para tentar fazer a diferença. Encontraram aliados por todo o país, no Twitter e na Uniarea. Como afirma Eduardo Couto, estudante de Educação Social no Instituto Politécnico do Porto, tinham todos “percursos escolares e universitários muito diferentes”, mas encontraram a coesão nos problemas que enfrentavam. E, assim, foram crescendo.

O nome que deram ao projeto foi “Quarentena Académica”, um espelho da realidade social que o país enfrentava e voltou para nos atormentar. Mas engane-se quem pensa que, quando a pandemia passar, o propósito da plataforma de estudantes vai tornar-se obsoleto. Tomás Nery, aluno de Biologia na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, afirma que a Quarentena Académica veio para ficar, até porque há questões que são transversais na vida dos estudantes, que apenas foram acentuadas pela Covid-19. E até o próprio nome pode ter um duplo sentido – “mesmo que a pandemia passe, e que as quarentenas deixem de existir, a ação do ministro e do Ministério continua sempre um pouco de quarentena”, denuncia o estudante.



Exemplo disso é a incapacidade que tiveram no combate às várias desigualdades sociais e económicas que a pandemia trouxe. Na primeira fase da mesma, a ação do Governo, afirma Eduardo Couto, não foi suficiente para mitigar as dificuldades de aprendizagem, trazidas por ambientes domésticos hostis, bem como pela inacessibilidade de vários estudantes a ferramentas essenciais ao ensino.

Para Tomás Nery, não podemos culpar apenas as universidades pelos acessos desiguais à educação. A questão central está, aliás, nos “problemas estruturais que já vinham do passado e não competem ao ensino superior resolver, em específico”. Existe um “subfinanciamento crónico por parte do Ministério da Educação” à Escola Pública e universidades e, por isso, são necessárias reivindicações globais, até porque “estas são sempre as mais precisas em momentos de emergência”, afirma, por sua vez, Eduardo.

E o estudante não precisa de recorrer às milhares de queixas que a Quarentena Académica recebeu para exemplificar este caso. Eduardo era estudante do ensino profissional há menos de um ano. Preparava-se para entrar em estágio, quando a pandemia irrompeu em Portugal. O Governo não deu respostas concretas às escolas sobre como lidar com esta situação. “No primeiro confinamento, o que o Ministério da Educação disse às escolas foi desenrasquem-se. Façam o que entenderem, não há normas a seguir. Cada escola é que decide se há estágios, ou não, e lidam com as consequências”, denuncia.

Já do lado das universidades, identificavam-se quatro grandes problemas nesta fase. A principal preocupação, na altura, e segundo as queixas que recebiam, era o pagamento de propinas. Com pais a serem despedidos ou a trabalharem em layoff e os próprios alunos a não poderem conciliar os estudos com um trabalho em part-time, as soluções encontradas pelas universidades – como a possibilidade de pagar as propinas mais tarde ou o aumento dos apoios a estudantes desfavorecidos – não foram suficientes. Até porque a propina não é um problema de agora: “elas já eram altas antes da pandemia”, afirma Eduardo.

Aliás, os alunos internacionais, que a Quarentena Académica não esqueceu, foram quem mais sofreram e ainda sofrem com as propinas. Tomás Nery afirma que “as universidades têm explorado os estudantes internacionais” e dá, como exemplo, a de Coimbra, onde metade do financiamento provém destes estudantes, o que, encarados com a incapacidade de pagar, os leva a abandonar Portugal.

Para além disso, as queixas recebidas pela plataforma também denunciavam o não-cumprimento do ensino à distância por faculdades e escolas, o excesso de trabalho que vários professores atribuíam aos estudantes – para compensar a falta de aulas presenciais e de elementos formais de avaliação -, bem como a inacessibilidade a bibliotecas.

Já com o retorno das aulas presenciais, em regimes totais ou mistos, os problemas transfiguraram-se, mas continuaram lá. Num inquérito realizado, a meio de janeiro, sobre as condições sanitárias em que as aulas e a 1.ª fase dos exames estavam a decorrer, a Quarentena Académica recebeu “várias denúncias de incumprimento de distâncias de segurança, realização de exames em que os alunos eram obrigados a ir presencialmente, mesmo com testes positivos, porque não havia alternativa online”, descreve Tomás Nery. No post do Instagram que fizeram sobre o inquérito, pode-se ainda registar falta de precauções de higiene e segurança, como “janelas fechadas, passagem de folha de presenças pelos alunos, falta de desinfetantes nos dispensadores e aglomerações à porta” da sala, professores que não usavam máscara e sobrelotação de transportes públicos.

Mas como a vida universitária não se faz apenas de aulas e exames, as residências foram o outro foco dos problemas trazidos pela pandemia. Eduardo Couto afirma que, no início, a plataforma teve “várias queixas de pessoas que diziam que as residências tinham sido fechadas e que os alunos não puderam, sequer, ir lá buscar as coisas que lhes pertenciam”, bem como existiam “residências onde havia quartos vazios, enquanto outros estavam com duas ou mais pessoas neles”.

As dificuldades e contradições comunicativas também foram outros dos problemas enfrentados pelas faculdades – principalmente na fase em que nos encontramos da pandemia. O segundo confinamento geral foi imposto a meio da época de exames e levou a uma confusão nas medidas a adotar para salvaguardar a avaliação dos estudantes.

No Instituto Politécnico do Porto, um despacho adiava inicialmente os exames do primeiro semestre para o fim do segundo, o que levou, por exemplo – e como identificam as queixas da Quarentena Académica -, alguns estudantes das ilhas a cancelaram viagens para o continente. Passado uma semana, essa mesmo despacho foi revogado e os estudantes tiveram de comprar, novamente, novos bilhetes. A pergunta paira no ar para Eduardo: quem é que paga pelos danos económicos causados?

As respostas são difíceis de obter, mas a Quarentena Académica não desiste de as conseguir. Apesar de existirem há menos de um ano, já conquistaram muito – e não pretendem ficar por aqui.

Em junho, os estudantes da Quarentena Académica saíram às ruas, por todo o país, para exigirem respostas ao Governo. Fotografia: Quarentena Académica.

Não é propriamente relacionado com a pandemia, mas, segundo Tomás Nery, conseguiram “que a Universidade do Porto abrisse um inquérito no Ministério Público sobre as queixas de racismo” denunciadas na plataforma. Para além disso, convocaram uma manifestação nacional, coberta por quase todos os órgãos de comunicação portugueses, para expor as denúncias acima apresentadas. Isto rendeu-lhes conversas com grupos parlamentes: foram ouvidos na Assembleia da República e recebidos na casa do primeiro-ministro, onde deixaram centenas de queixas.

António Costa não estava presente – e o mesmo se poderá dizer das respostas que os estudantes nunca chegaram a receber.

Revisto por Pedro Valente Lima.