Amanda Ribeiro

Estudante de Ciências da Comunicação e amante de política. Faço parte do departamento de Comunicação da APA.

Quando li José Ortega y Gasset pela primeira vez, estava envolvida também na leitura de História da Civilização Ocidental, de Edward McNall Burns. Em vários capítulos, McNall leva-nos a um sentimento de trajetória crescente da ciência, passo a passo, até chegar a todo o conhecimento científico que temos hoje. Antes, nações morreram de doenças pelas quais ninguém morre mais. Descobertas atrás de descobertas, a cada página o homem evoluía aos meus olhos – e acompanhar tal evolução fez-me refletir que sorte tive apenas por nascer em minha própria época. Alguns séculos – ou décadas atrás -, minha expectativa de chegar até a velhice estaria tristemente reduzida e minhas possibilidades de conforto na vida e na morte possivelmente seriam ínfimas. Bem que Mankiw disse um dia que o mais rico homem de séculos atrás não vivia tão confortável e aparado pelas instituições quanto o homem mediano dos tempos modernos.

Quando comecei Ortega, não havia lido nada sobre o livro. Não estava preparada ou contextualizada para o que ele disse, e além de quaisquer pensamentos complexos – e são muitos, dos quais alguns discordo e alguns concordo – que o autor deita em sua obra, quis focar-me aqui em um tópico que profundamente me tocou: “Mas agora é o homem quem fracassa por não poder continuar emparelhado com o progresso de sua própria civilização”.

Publicado numa época em que Portugal e Itália viviam a ditadura, perto da quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, da ascensão nazista e da Guerra Civil Espanhola, o livro investiga a raiz moral das crises e problemas políticos do seu tempo. O súbito desenvolvimento do século não foi acompanhado pelo homem que nasceu no século, pois ele não estava ao lado dos homens das diversas décadas passadas – ele não acompanhou cada estudo complexo, cada descoberta inigualável, cada evolução social, científica e filosófica dos tempos anteriores e não pôde chegar às conclusões obtidas. Ele nasceu no ambiente fácil, onde tudo vem pronto e preparado.

“(…) Aprendeu a usar muitos mecanismos da civilização, mas ignora desde a raiz os próprios princípios da civilização.”

Não quero afirmar que o conhecimento é puramente acumulativo – jamais, pois estaria ignorando grandes trabalhos ao modo do que tornou conhecido a comprovação de Thomas Kuhn. Também não se deve ligar o Homem-massa de Ortega y Gasset com classe social, ou grau de instrução – mas proponho uma ligação com o homem que nasceu em um mundo moderno e digital, onde tudo ao seu redor foi dado pronto, e grandes descobertas científicas muito árduas e trabalhadas significam pouco. Sentiu-se identificado com alguns aspectos presentes?

Pois bem, negacionismo intelectual, científico, sistêmico e político – em meio a uma pandemia, vivemos anos antivacina também. Nesse contexto, crescem os políticos que negam a política e o sistema – pois esses termos também parecem ser sinônimos de corrupção e inutilidade, e eles bem precisam dizer o que a população cansada quer ouvir para alcançarem os cargos desejados. É entendível, não vou afirmar que são poucos os casos de péssimas governabilidades, mas é em terrenos de crise econômica e social que o fascismo encontra terreno fértil – bem disse a Alemanha.

O desgaste dos sistemas políticos nacionais acaba elegendo profissionais populistas e, por vezes, despreparados para o cenário governamental, que admitem não imaginar que pudesse ser “tão difícil ser um presidente” e que antes de terem subido ao cargo, não tinham experiência política. É o exemplo de Donald Trump, anteriormente personalidade televisiva, e Jair Bolsonaro, quase 30 anos de política e apenas dois projetos aprovados. Para ser ainda mais atual e bem situado, temos o discurso antissistema de André Ventura.

Não é preciso, de fato, não ter experiência política para se encaixar nessa personalidade. Na realidade, não nego que um cidadão em sua vida civil possa crescer ao ambiente político – ao contrário, que faça! E também não poderia negar a capacidade administrativa que um grande empresário como o ex-presidente norte-americano precisa ter. Mas é necessário que o próprio político entenda e admita a importância de ser político, para que possamos ao exemplo da Ágora melhorarmos o que sabemos que precisa existir – instituições fortes e que garantam segurança social aos cidadãos, governos que englobem a todos (e que não governem declaradamente apenas para “alguns”), democracia devidamente estabelecida.

Habermas fala mesmo da exaltação antipolítica como um escape à exigência política insuficiente. Indignação, rebelião, vontade de libertar-se das velhas políticas. Um sentimento de protesto que acaba resultando negativamente. Facilmente, todas as atitudes e falas polêmicas desses políticos ganham repercussão nacional. Em tempos de era digital, infinitas informações e muitas fake news, a visibilidade está garantida. Mas isso não impede os antipolíticos de cometerem os mesmos atos que os tais da velha política também fizeram – alianças entre partidos em troca de interesses, lobby político, corrupção, mudanças de “lado”… A lista é imensa. Mas a mídia está ocupada dando holofotes para as frases politicamente incorretas e duvidosas e o debate segue raso.

Não é que acordos com o “centrão” não sejam necessários em um país como o Brasil. Em meio ao presidencialismo de coalizão de Sérgio Abranches, sabe-se que não há como governar tal país continental sem estabelecer alianças políticas. É que negar o seu próprio perfil enquanto o pratica pelas costas do povo é uma formatação típica do governo errado. E, principalmente, do governo que não quer que a população compreenda a importância do cientificismo, do intelectualismo saudável, do entendimento da história mundial para a manutenção da democracia e para a não repetição de alguns péssimos fatos históricos.

Tanto a direita quanto a esquerda acabam pairando em debates rasos, ocupados com manchetes alarmantes, enquanto estudos verdadeiros e dados factuais poderiam ser terrenos férteis para propostas governamentais verídicas. Enquanto isso, em meio a uma pandemia que mata o mundo, o negacionismo científico cresce poderosamente. A democracia não pode permitir a sua autofagia e a saúde coletiva não pode depender de opiniões individuais.